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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Lei sobre ressarcimento de operadoras ao SUS gera dúvidas

*Por Daniela Xavier Artico de Castro

Em 3 de junho de 1998, surgia a Lei 9.656, que regulamentou a atividade dos planos de saúde, e com ela, a obrigação das empresas operadoras ressarcirem os cofres públicos quando seus beneficiários utilizam do Sistema Único de Saúde. Seis meses após o início da vigência, o Supremo Tribunal Federal recebeu a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.931, que até hoje não foi julgada, embora exista uma liminar que legitima a cobrança. Desde então, já se passaram mais de 15 anos, e o presente texto pretende trazer algumas reflexões acerca da aplicabilidade da Lei 9.656/98 ao longo desse período.

O complexo processo de cobrança administrativa e o alto custo operacional envolvido
O processo de cobrança administrativa do ressarcimento ao SUS envolve várias etapas, exigindo alto custo operacional — tecnológico e de pessoas qualificadas — das operadoras e da ANS. O procedimento inicia-se com um trabalho de triagem por parte da ANS, mediante cruzamento de informações, entre os milhares de atendimentos prestados pelo SUS e os dados cadastrais que as operadoras enviam à ANS. Em tese, essa triagem deveria afastar também casos de homônimos e ausência de cobertura, mas o que se vê na prática é que as Operadoras acabam recebendo algumas cobranças com essas caracteristicas.

Notificada, a empresa tem 30 dias para impugnar a cobrança em primeiro grau administrativo, período que tem para analisar cada contrato, um a um, e identificar: (i) a segmentação do contrato — ambulatorial, hospitalar, com ou sem obstetrícia — e se o atendimento pelo SUS previa cobertura contratual; (ii) se o atendimento ocorreu durante a vigência do contrato; (iii) a abrangência geográfica; (iv) os períodos de carência e (v) se o contrato excluía expressamente o tipo de atendimento.

Ocorrem outras situações fora desses padrões, como por exemplo o relato de uma operadora do Paraná que recebeu a cobrança de um parto em homem, e em outro caso, uma mulher que no mesmo ano teria feito uma curetagem pós-aborto em Fortaleza em junho, e um parto-cesárea, em agosto, em Brasília, e ainda, em janeiro do ano seguinte, uma curetagem pós-aborto em São Bernardo do Campo. Contatada, a paciente afirmou que nunca engravidou e sequer conhece as cidades citadas, mas segundo a ANS, os atendimentos foram pagos pelo SUS. Tais exemplos são uma amostragem das fraudes sofridas contra o SUS, e que, as operadoras não investirem num eficiente trabalho, pagarão pela má gestão do dinheiro público.

O processo será julgado pela própria ANS, e se o ressarcimento não for cancelado, a operadora terá um prazo de dez dias para recorrer à segunda instância administrativa. Após o julgamento final, persistindo o ressarcimento, será gerada uma Guia de Recolhimento da União, com vencimento de pagamento para 15 dias. Se passados 75 dias o débito não for pago, a cobrança é enviada à Procuradoria da ANS para processo judicial, que pode levar até 15 anos ou mais, como é o caso da ADI 1.931 acima citada.

Através de um interessante estudo, o Instituto de Estudo de Saúde Suplementar (IESS) apurou que entre 1999 e 2006, após o processo administrativo, 45,8% das cobranças foram canceladas pelos seguintes motivos: (i) carência; (ii) ausência de cobertura contratual; (iii) homônimos; (iv) atendimentos fora da área de cobertura contratual. Esse percentual representou R$ 651,9 milhões, equivalente a apenas 0,13% dos gastos totais do SUS no mesmo período, contudo, somente R$ 97 milhões foram recolhidos nesse período, valor equivalente aos gastos da ANS para fazer frente ao ressarcimento nesse período, donde se conclui que todo esse trabalho de cobrança administrativa praticamente foi em vão. E ao final restaram R$ 554,9 milhões para a Procuradoria da ANS executar judicialmente.

O processo de cobrança judicial e a prescrição decorrente da inércia da ANS
Por falta de estrutura, a ANS não executou judicialmente grande parte dos ressarcimentos que estavam sob sua responsabilidade, e essa inércia tem como consequência a prescrição.

A inércia da ANS provocou a manifestação do Tribunal de Contas da União, que proferiu um acórdão afirmando que os créditos do ressarcimento seriam imprescritíveis, sob o fundamento do art. 37, parágrafo 5º, da Constituiçao. Contudo esse argumento não subsistirá, pois nem mesmo a procuradoria da ANS o aceita em sua totalidade, nem o judiciário, e ainda, o próprio TCU possui outra decisão divergente, proferida pela 4ª Secretaria, que entende que o ressarcimento ao SUS é prescritível, uma vez que não existe ilícito por parte do agente público e muito menos dos usuários de Plano de Saúde.

O Judiciário, apesar de entender que ressarcimento é prescritível, ainda não chegou a um consenso quanto ao prazo: trienal — defendido pelas operadoras — ou quinquenal — aceita pela ANS —, e quanto ao marco inicial —atendimento, término do processo administrativo ou data do boleto de cobrança. Mas a ANS, em vários processos, defende a prescrição quinquenal, fundamentada no Decreto 20.910/32, contada da data do vencimento do pagamento, tendo sido consagrada no Parecer da ANS 1/2013/DIGEAP/CGCOB/PGF e pela Nota 68/2013/DCPJ/DEPCONT/PGF/AGU.

No fim do ano passado, a ANS editou um parcelamento extraordinário (Portaria 395/2013), que englobava os débitos vencidos e não executados até novembro de 2008, ou seja, prescritos por 5 anos. Concedeu supostas vantagens através de descontos de 60% a 100% nas multas e de 25% a 45% nos juros. E nessa atitude desesperada de receber valores prescritos, desrespeitou os princípios constitucionais da moralidade (art. 37) e da legalidade (art. 5º, II), pois, possivelmente, várias empresas incorreram em erro de parcelar débitos extintos, que somente poderão ser revertidos com uma decisão judicial, já que o Superior Tribunal de Justiça possui precedentes sobre parcelamentos acordados após a consumação da prescrição não tem o condão de retroagir como causa interruptiva.

Dentre as centenas de normas da ANS, existe a obrigação das operadoras de provisionar contabilmente e manter em contas vinculadas, em espécie, todos os valores referentes aos eventos e sinistros a liquidar, entre eles, os valores das GRUs de ressarcimento ao SUS, ainda que prescritos. Esse dinheiro fica indisponível para a operadora, e sua única saída é requerer judicialmente a ausência de obrigação legal de provisionar valores prescritos para que essas quantias sejam liberadas ao fundo comum que pertencem aos consumidores.

Reflexões finais
Esse complexo sistema, apesar de ter altíssimos custos tanto para ANS quanto para as operadoras, possui pouca efetividade e eficiência, e o dinheiro público envolvido poderia ser investido de forma direta no SUS em beneficio da população.

Se enganam os que pensam o ressarcimento ao SUS é pago pelas empresas; na verdade são os consumidores que arcam com o custo final, já que as operadoras são mantidas através das mensalidades pagas pelos usuários, que compõe um fundo comum pertencente aos consumidores, e todo esse ônus do ressarcimento é arcado com os recursos desse fundo, e transferido para as mensalidades. As empresas operadoras estão expostas a uma alta carga tributária — ISS, IRPF, PIS/COFINS, contribuição social, taxa da ANS —, incrementando as receitas públicas, mas que também são pagos indiretamente pelos usuários de plano de saúde. Esses mesmos usuários de plano de saúde desonerarem o SUS que não é capaz de absorver o atendimento desses — aproximadamente — 50 milhões de brasileiros que pagam para ter acesso saúde e pagam de novo quando usam o SUS através do ressarcimento. Imposto pela Lei 9.656/98.

Por fim, há que se refletir que o artigo 196 da CF garante que a saúde é direito de todos e dever do Estado, não podendo ser aceito que os usuários de plano de saúde ressarçam o SUS, ainda que indiretamente, quando usam os serviços da saúde pública. Mas como pende de julgamento a ação citada no inicio deste texto, ainda há uma esperança de que a Justiça seja feita pelos ministros do Supremo Tribunal Federal.

Daniela Xavier Artico de Castro é advogada pós-graduada em Direito Tributário Material e Processual, Especialista em Direito Contratual e atuante nas áreas de Direito Médico e Saúde Suplementar em Curitiba.

Fonte: Revista Consultor Jurídico