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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Justiça é cada vez mais acionada em causas de saúde

*Por Paula da Silva Santos Volpe

Saúde pública traz em seu conceito bem mais do que o mero estado biológico caracterizado pela ausência de doenças. Para a Organização Mundial de Saúde, pode ser definida como cuidado com o ser humano em sua totalidade, garantindo bem estar físico, mental e social.

Por conta disso, supervalorizar a medicina curativa significaria deixar de lado a preventiva, o que importaria colocar em segundo plano aquela disciplina que proporciona melhor qualidade de vida às pessoas uma vez que, antecipado o diagnóstico, diversas doenças consideradas fatais podem ter maiores chances de cura.

No Brasil, já com olhos para essa situação, tem-se uma medicina integralizada, que se presta tanto a medidas curativas como preventivas.

Nesse sentido, o Sistema Único de Saúde representa inclusão social, já que a rede pública é a principal fornecedora dos serviços de saúde no país, considerando-se que menos de 30% da população brasileira tem acesso a planos de saúde.

Para manter em funcionamento nosso sistema público de saúde, faz-se uso do financiamento tripartite, aliando verbas das esferas federal, estadual e municipal. Em razão desse quadro, há uma divisão de atribuições, uma vez que nenhum ente federativo é isento de obrigações, sendo a responsabilidade solidária.

Na prática, porém, constata-se que todos esses recursos investidos ainda vem sendo insuficientes para suprir a grande demanda existente no país.

Assim, o povo brasileiro enfrenta desafios para ter assegurada a saúde que lhe é garantida constitucionalmente.

Por conta do abismo criado entre a necessidade e a oferta adequada de atendimento/tratamento, hoje se sabe do alto valor que vem sendo custeado pelo Estado para o atendimento às demandas judiciais. Isso se dá porque o cidadão brasileiro, cada dia mais consciente de seus direitos, bate às portas da Defensoria Pública, Ministério Público e dos advogados como forma de procurar garantir judicialmente seu direito fundamental à saúde, concretizado na realização de cirurgias e procedimentos assim como na obtenção de medicamentos.

Diante desse cenário, ao nosso sentir, ao invés de se buscar combater a chamada ‘judicialização da saúde’ (demandas judiciais para acesso aos serviços e insumos de saúde), medida inadequada posto que as ações propostas decorrem de interesses legítimos, a questão objeto de reflexão precisa ser: essa judicialização vem ocorrendo de forma consciente e racional?

Preocupados já há tempos com o alto volume de litígios envolvendo o tema os membros do Conselho Nacional de Justiça, no ano de 2010, editaram a Recomendação 31 no sentido de que os tribunais orientem “a adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e operadores do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde”.

Consta, por exemplo, da mencionada Recomendação, que devem os tribunais orientar os magistrados, através de suas corregedorias, a evitar a autorização para o fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária ou em fase experimental, ressalvados os casos previstos legalmente.

Tal medida é necessária porque parte das ações judiciais é referente a medicamentos experimentais que sequer obtiveram aprovação da Anvisa. Isso demonstra que, em determinados pleitos levados ao Judiciário, a parte busca o fornecimento de remédios que não tiveram seus resultados devidamente comprovados ou seus efeitos colaterais cabalmente analisados.

Portanto, é exigível pela via judicial o fornecimento de medicamentos, desde que os mesmos tenham sido, ao menos, devidamente registrados na mencionada autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, cuja principal finalidade é a proteção da saúde pública.

Necessário ponderar com cautela tais questões porque, se por um prisma a pronta intervenção do Judiciário corrige graves desrespeitos ao direito constitucional do cidadão por parte do Estado, por outro o alto volume de condenações judiciais sem critérios pode inviabilizar a universalidade da saúde. Isso porque pouco adiantaria a obtenção da tutela jurisdicional caso o declínio de todo o sistema acabasse por levar à ausência de condições financeiras para o atendimento das demandas.

Nesse diapasão, a questão dos interesses econômicos deve ser trazida à mesa de discussão. A ótica da indústria farmacêutica e seu poderoso lobby exercido sobre segmentos sociais(associações de pacientes, médicos) para aquisição de medicamentos, muitas vezes, colide com a ótica da saúde pública. Até por isso o CNJ, na já citada Recomendação 31, orientou que os magistrados ouçam, por meio eletrônico, quando possível, os gestores, antes da apreciação das medidas de urgência uma vez que o Ministério da Saúde faz uso de protocolos elaborados com evidências científicas acerca da efetividade dos medicamentos para incluí-los, por exemplo, na lista do SUS.

Também nesse sentido é a decisão da ministra Ellen Gracie na Suspensão de Segurança 3.073/RN ao entender incabível o fornecimento de medicamentoda lista do Programa de Dispensação em Caráter Excepcional do Ministério da Saúde. Vejamos: “Verifico estar devidamente configurada a lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa, porquanto a execução de decisões como a ora impugnada afeta o já abalado sistema público de saúde. Com efeito, a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários. Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se deferir o custeio do medicamento em questão em prol do impetrante, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. Ademais, o medicamento solicitado pelo impetrante, além de ser de custo elevado, não consta da lista do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional do Ministério da Saúde, certo, ainda, que o mesmo se encontra em fase de estudos e pesquisas. Constato, também, que o Estado do Rio Grande do Norte não está se recusando a fornecer tratamento ao impetrante. É que, conforme asseverou em suas razões, ‘o medicamento requerido é um plus ao tratamento que a parte impetrante já está recebendo’ (fl. 14). Finalmente, no presente caso, poderá haver o denominado "efeito multiplicador" (SS 1.836-AgR/RJ, rel. Min. Carlos Velloso, Plenário, unânime, DJ 11.10.2001), diante da existência de milhares de pessoas em situação potencialmente idêntica àquela do impetrante. 6. Ante o exposto, defiro o pedido para suspender a execução da liminar concedida nos autos do Mandado de Segurança nº 2006.006795-0 (fls. 31-35), em trâmite no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Comunique-se, com urgência”. (STF, DJU 14 fev. 2007, SS 3.073/RN, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie)

É claro que se deve fazer uso do que há de melhor em favor dos pacientes, mas desde que respeitadas práticas cientificamente reconhecidas e observada a legislação.

Apesar de a indústria farmacêutica dispor de vultosos lucros e respeitados especialistas, no Brasil de regra não se tem nos quadros do Poder Judiciário sequer uma equipe técnica qualificada em quantidade suficiente, composta por médicos e demais profissionais da área de saúde, para auxílio na controvérsia e peculiaridade de cada caso e doença.

Desta forma, causas complexas e que exigem conhecimento específicos acabam obtendo êxito na maior parte dos conflitos, principalmente quando é apresentado atestado/laudo no qual se menciona risco de morte ao paciente caso o tratamento/medicamento não seja obtido com celeridade na vida judicial, sem que se disponha de todos os elementos necessários por ocasião do julgamento.

Importante alertar para o fato de que ainda não existem estatísticas nacionais confiáveis para aferir o total impacto dessas decisões no orçamento brasileiro. Apesar disso, acabam sendo essas sentenças necessárias porque, por vezes, são a única forma de alguns pacientes verem garantido seu direito constitucional à saúde.

Quantificar esses valores serviria para demonstrar o quanto se retira da esfera que atende todo o povo para se proceder à entrega, de forma individualizada, a uma parcela bastante menor dessa mesma população.

Importante consignar tais questões porque, apesar de se ter a impressão de que o acesso é o mesmo para todos, em verdade o Judiciário, como via de obtenção de saúde, acaba ficando restrito àqueles que tem esclarecimentos suficientes, condições de contratar advogado ou podem fazer uso da Defensoria Pública para fazer valer seus direitos, levando a obtenção de liminares por unsà uma demora ainda maior no atendimento aoutros doentes que aguardam ‘na fila’, há mais tempo.

Isso acarreta o risco de, sob a justificativa de socorrer os direitos de uns, acabar por serem provocados sérios prejuízos aos de muitos outros.

Também para aqueles que possuem planos privados de saúde já se vê o agigantamento da judicialização, isso porque ter um plano de saúde hoje não é mais garantia suficiente de segurança e atendimento em todas as necessidades. A insatisfação dos usuários com planos precários é cada dia maior.

São grandes os contrastes entre os mesmos e os SUS: enquanto os planos apresentam períodos de carência (tempo que o usuário deve aguardar para ser atendido em determinados procedimentos), o SUS não faz tal exigência; enquanto grande parte dos planos efetua apenas atendimento médico-hospitalar, o SUS deve realizar atendimento integralizado; enquanto os planos apresentam falhas na cobertura de exames, o SUS tem o dever de oferecer saúde de forma global.

Diante desse quadro a alternativa daquele que possui seguro ou plano de saúde é também buscar o Judiciário.

Nesse panorama, no qual são confrontados o direito constitucional à saúde e a limitação orçamentária do Estado, cujos recursos financeiros são finitos, verifica-se também um certo caráter pedagógico na via judicial ao orientar o gestor da saúde pública acerca da necessidade de se optar por medidas que efetivamente atendam às necessidades da sociedade.

Isso porque já há quem defenda que, apesar de os gastos públicos serem fixados legalmente, a verba para outras ações governamentais (como no campo da publicidade) poderia ser utilizada para a saúde, uma vez que é melhor um Estado enxuto em propagandas mas que apresente patamares elevados no atendimento à saúde de seu povo.

Nesse sentido existe decisão recente, de agosto de 2013, na comarca de São José dos Currais (RN(, na qual ao argumento de que o Estado não vem correspondendo aos anseios da populaçãofoi determinado pelo magistrado que fossem suspensos todo os gastos com propaganda institucional até que se garantisse o acesso à saúde no caso específico dos autos. Consta da sentença ainda que, conforme os números do Tribunal de Contas do Estado, em 2011 foram gastos no Rio Grande do Norte R$ 11 milhões em saúde e um total de R$ 16 milhões em propaganda governamental.

Em regra, apesar de os governos não desejaram trazer a público questões polêmicas como a escassez orçamentária na área da saúde pública, o fenômeno da judicialização revela a delicadeza do tema, fazendo-se imprescindível até por isso ressaltar ainda mais a importância e necessidade do diálogo entre instituições e Poderes, com a realização de audiências públicas, capacitações, debates, etc, de forma a, enfim, compatibilizar as questões financeiras com um sistema de saúde eficiente.

Paula da Silva Santos Volpe é promotora de Justiça do Patrimônio Público, Fundações e Entidades de Interesse Social da Comarca de Campo Grande (MS)

Fonte: Revista Consultor Jurídico