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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

terça-feira, 24 de abril de 2012

O aborto além da anencefalia

Em várias partes do país, juízes têm autorizado a interrupção da gestação de fetos com cérebro, portadores de outras anomalias

A gaúcha Rosana Rodrigues, de 38 anos, lembrou-se de um dos anos mais marcantes de sua vida ao acompanhar a sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) da quinta-feira 12. Naquele dia, por 8 votos a 2, os ministros determinaram que as mulheres têm o direito de interromper a gravidez quando o feto for anencéfalo – ou seja, não tem cérebro. Até então, as gestantes nessa situação precisavam de autorização específica da Justiça para realizar um aborto. Rosana viveu uma situação semelhante, mas de outra natureza. Em 2003, em seu quarto mês de gravidez, um exame genético identificou uma anomalia grave no feto que impediria seu pleno desenvolvimento. Não era anencefalia. Não representava risco de morte evidente para a mãe – caso em que a legislação brasileira permite o aborto. Mesmo assim, Rosana pediu à Justiça autorização para interromper sua gravidez. E conseguiu.

O diagnóstico anexado ao processo mostrou que o filho de Rosana tinha síndrome de Patau, anomalia rara em que o embrião tem três cromossomos número 13, em vez de dois. Os problemas mais comuns causados por essa condição são lábio leporino, globo ocular pequeno e polidactilia (os bebês nascem com mais de cinco dedos em cada pé ou mão). Todos os outros órgãos podem ser afetados. As estatísticas mostram que 44% dos bebês com esse diagnóstico morrem antes do primeiro mês de vida. Só 30% sobrevivem mais que seis meses. Raríssimos chegam à vida adulta. Segundo o parecer médico, se sobrevivesse, o bebê teria convulsões frequentes e deficiência mental grave.

A primeira juíza que analisou o caso negou o pedido de aborto. Rosana e seu marido recorreram. No dia 2 de abril de 2003, o desembargador Manuel José Martinez Lucas afirmou que, em 1940, quando o Código Penal brasileiro foi elaborado, a medicina não tinha os recursos técnicos que hoje permitem o diagnóstico de anomalias fetais graves. Para ele, no entanto, isso não poderia impedir um juiz de tomar uma decisão que considerasse mais justa. “O Direito (...) não se esgota na lei, nem está estagnado no tempo, mas necessita acompanhar a evolução social, sob pena de perder o prestígio e o sentido”, afirmou. Martinez Lucas citou os graves problemas que o bebê teria se sobrevivesse. “Parece-me induvidoso que, nessa hipótese (de o bebê nascer), se poderá prever, aí sim, uma terrível desorganização da saúde mental, aliás natural em função do pesadíssimo encargo que a vida impôs a esse casal”, disse. O aborto estava autorizado.

Rosana conquistou esse direito, mas não o exerceu. Quando a decisão saiu, ela já estava no quinto mês de gravidez. Os médicos disseram que, naquele estágio, não fariam um aborto, mas uma antecipação do parto. Assim, se o bebê nascesse com vida, poderia passar dias, semanas ou meses na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Rosana já passara por isso com seu primeiro filho – um garoto que hoje tem 18 anos e tem malformação no cérebro – e não quis repetir a experiência. Resolveu esperar até o fim da gestação. “Levei a gravidez com muito sofrimento. Vivia sedada e comecei a fazer terapia para sobreviver”, afirma. “Deixamos de fazer planos. Estagnamos ali.” Depois do parto, uma mini-UTI foi montada em sua casa. Foi lá que, aos 3 meses de vida, Luiz Miguel morreu. Casada há 20 anos e mãe de dois filhos (ela tem também uma menina de 7 anos), Rosana não se arrepende de ter mantido a gravidez. Mas ficou feliz com o desfecho jurídico de sua história. “Nosso caso serviu de jurisprudência e abriu portas para outras pessoas”, diz. Seu processo ajudou a criar uma nova realidade na interpretação jurídica de situações de malformação de fetos, além da anencefalia. Foi citado em pelo menos outras oito decisões judiciais que autorizaram interrupção de gravidez.

Os casos mostram que juízes e desembargadores estão promovendo uma relevante transformação na forma como a Justiça brasileira vê o aborto. Esses magistrados têm autorizado a interrupção da gravidez de fetos, com cérebro, mesmo em situações que não se enquadrem nas duas hipóteses explicitamente citadas na lei: estupro ou de risco de morte para a mãe. Um levantamento de ÉPOCA identificou pelo menos 18 decisões do tipo, em cinco Estados: Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Elas se referem a anomalias com duas características: permitem o desenvolvimento do cérebro – o que as diferencia da recente decisão do STF –, mas trazem a possibilidade nula ou remota de que o feto venha a se desenvolver fora do útero – o que acompanha o princípio em que se baseou o Supremo.

As 18 decisões são somente uma fração do que ocorre no país – dizem respeito apenas a processos que chegaram à segunda instância. Isso só acontece quando alguma das partes recorreu da decisão do primeiro juiz do caso, sejam os pais, o Ministério Público ou algum advogado geralmente ligado a algum grupo religioso. Quando o juiz de primeira instância autoriza o aborto, e ninguém recorre, sua decisão não é indexada na pesquisa pública de jurisprudência do Tribunal. Se fosse, o número de casos encontrados seria bem maior.

A experiência do desembargador paulista José Henrique Torres, presidente da Associação de Juízes para a Democracia, dá a dimensão dessa transformação. Ele afirma que, como juiz em Campinas, interior de São Paulo, já deu mais de uma centena de decisões favoráveis à interrupção da gravidez em casos de malformação fetal diferentes da anencefalia.

Em nenhuma decisão, diz, houve recurso. O médico Thomaz Gollop, autor de pesquisas sobre o tema, estima que desde 1989 já tenham sido autorizados cerca de 10 mil abortos de fetos com anomalias muito graves, seja anencefalia ou não. É difícil prever se, no futuro, a permissão para interromper a gravidez no caso de outras anomalias será automática, como passou a ocorrer com a anencefalia, após o julgamento do STF. Mas sabe-se que decisões das instâncias inferiores são fundamentais para determinar o roteiro jurídico de questões que envolvam dilemas morais. Exemplo disso é o que ocorreu com a própria anencefalia. As primeiras decisões autorizando interrupção de gravidez em fetos sem cérebro não partiram de constitucionalistas consagrados, mas de juízes de pequenos municípios do interior. O registro mais antigo, segundo Gollop, é de 1989, quando um juiz de Ariquemes, Rondônia, deu a primeira decisão autorizando a interrupção de uma gravidez de anencéfalo. O pedido havia sido feito em nome de uma paciente pela médica Maria Alice Moura, mulher do atual governador, Confúcio Moura. O segundo alvará mais antigo é de Rio Verde, Mato Grosso do Sul. Depois disso, o entendimento espalhou-se por todos os Estados. “A decisão do Supremo não foi tomada em dois dias por dez ministros, mas em mais de duas décadas por milhares de juízes”, afirma Torres.

Uma pesquisa coordenada por ele junto a 1.493 juízes, em 2006, mostrou que 79% acreditavam que o aborto deveria ser permitido em caso de “feto com qualquer malformação congênita grave incompatível com a vida extrauterina”. Torres reconhece haver uma diferença entre os casos de anencefalia e os demais. Como o feto anencéfalo não tem cérebro, quem defende o direito de escolha da mulher nessa situação costuma fazer uma analogia da situação com a morte cerebral e concluir que um bebê com anencefalia não tem vida. No caso de outras anomalias graves, no entanto, a criança tem cérebro, ainda que muitas vezes malformado. Juízes e desembargadores que autorizam o aborto nesses casos preferem concentrar sua argumentação em outros aspectos, como a dignidade da mulher, a saúde psíquica da família, a necessidade de o Direito se adequar aos avanços tecnológicos e a analogia com outros casos.

Foi o que fez o desembargador paulista Marco Antonio Marques da Silva em 2009, ao julgar o pedido de uma mulher grávida de gêmeos xifópagos (siameses) que não tinham perspectiva de sobreviver. Eles estavam unidos pelo tórax e pelo abdome e compartilhavam o mesmo coração. Caso nascessem, não resistiriam. Também não havia a possibilidade médica de separá-los. Em seu voto, Marques da Silva lembrou que a lei permite o s aborto em caso de estupro, o que alguns juristas chamam de “aborto humanitário”. “Se o aborto humanitário tem como fundamento a preocupação com os sentimentos da mãe, por que não admitir esse cuidado no caso de feto com anomalia sem possibilidade de vida extrauterina, mantendo a gestante subjugada a tamanho dissabor?”, escreveu. Quando a decisão saiu, a mãe já estava no sétimo mês da gravidez, internada no hospital com pressão alta. Um dos gêmeos morreu ainda em seu útero. O outro, logo depois de ser retirado. “Foi uma decisão pessoalmente muito difícil de tomar”, diz o desembargador Marques da Silva, que já tem 29 anos de magistratura. Católico praticante, teve de deixar sua crença de lado no momento de decidir. “O aborto tem como foco questões jurídicas, éticas, morais, religiosas, com repercussão na sociedade e em seu sistema de valores. Ao Direito cumpre o papel de gerir todos os acontecimentos que se refletem na vida do homem, para manutenção de seu equilíbrio”, escreveu.

Convicções pessoais, morais e religiosas são citadas em diversos julgamentos de aborto. Juízes que autorizam os pedidos costumam dizer que elas não devem ser levadas em conta; os que os negam as usam como base de sua argumentação. Em 2010, um deles, no Rio de Janeiro, afirmou que a gestante ficaria psicologicamente mais abalada se fizesse o aborto do que se continuasse a gravidez de um feto inviável. A mãe que havia entrado com o pedido gerava um filho com a síndrome de Edwards, uma anomalia cromossômica causadora da morte da criança ainda no útero em 95% dos casos. Segundo o juiz, a gestação de um filho sob essa condição, “antes de violar a dignidade da mulher, engrandece-a”. A decisão foi revertida na segunda instância. Em outro caso, também do Rio de Janeiro, um desembargador negou apaixonadamente o pedido de um casal para interromper a gravidez de um feto portador de “holoprosencefalia com fusão talâmica e ventrículo único”. O problema, caracterizado pela ausência de divisão dos hemisférios cerebrais, limitava o desenvolvimento do feto. A previsão revoltou o magistrado, convicto de que a vida deveria ser protegida independentemente de sua duração. “Mais um pouco, uma criança cuja mãe trabalha em um lixão, com certeza, terá muito pouco prognóstico de vida saudável após o nascimento.” Para desqualificar o laudo anexado, declarou: “As previsões médicas são semelhantes às dos horóscopos de final de ano, que costumam prever infortúnios no ano que se aproxima e são convenientemente esquecidas quando não ocorridas (...)”.

Outro caso exemplar é dos paulistanos Gislene e Heber Faria. Num exame de rotina, a médica que acompanhava a primeira gestação de Gislene disse que, se o bebê nascesse, teria pouquíssimas chances de sobreviver. Se permanecesse vivo fora do útero, seria por pouco tempo e, ainda assim, sempre na UTI. O embrião tinha a síndrome de Edwards, diagnóstico posteriormente confirmado por outros especialistas. Na Justiça, o casal conseguiu autorização para fazer o aborto, mas desistiu. No início, Gislene e Heber não contaram a ninguém o drama que enfrentavam. Na aula de hidroginástica, as colegas de Gislene faziam comentários como “Parabéns! Meninas são companheiras da vida toda para a mãe”. Ou: “Vai ser parto normal?”. Ela não respondia. “Elas devem ter pensado que eu era antissocial. Eu até queria falar, mas não queria sofrer mais”, diz. Cansada de se esquivar, Gislene resolveu se isolar em casa até o nascimento da filha. Mariana nasceu com 36 centímetros e 1,4 quilo. Morreu no 42º dia, sem nunca ter deixado a UTI do hospital.

Levar a gestação até o fim foi uma escolha da qual Gislene e Heber não se arrependem. “Pude passar algum tempo com a minha filha, ainda que pequena”, diz ela. Mas foi uma decisão difícil. “O problema não é só o sofrimento dos pais”, afirma Heber. “A nossa filha também teve uma vida de sofrimento nesse período.” Por tudo isso, os dois defendem com convicção a liberdade de escolha dos casais em situações semelhantes. “O alvará permitiu que a gente seguisse o nosso caminho com muito mais convicção e fizesse uma escolha. Sem isso, a gente continuaria a gravidez simplesmente porque não havia nenhuma alternativa”, diz ele. No Brasil de hoje, existem cada vez mais escolhas, assim como dilemas.

Fonte: Revista Época / ANGELA PINHO