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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Parecer CFM nº 2/2011 - Relação entre Medicina e espiritualidade no Brasil

PROCESSO-CONSULTA CFM nº 4.043/10 – PARECER CFM nº 2/11

INTERESSADO:
Sra. E.Q.S.

ASSUNTO:
Relação entre a ciência (Medicina) e a espiritualidade no Brasil

RELATOR:
Cons. Júlio Rufino Torres

RELATOR DE VISTA
Cons. Gerson Zafalon Martins

EMENTA: Não há que existir incompatibilidades entre a fé e a razão, entre a crença e o conhecimento científico no ensino, nem no exercício da profissão médica, desde que respeitados os princípios básicos irrefutáveis da boa prática médica.

CONSULTA

A sra. E.Q.S., doutoranda em Sociologia e Antropologia na Universidade Paris Descartes ─ Sorbonne, na França, elabora tese sobre as relações entre a ciência, especificamente a medicina, e a espiritualidade/religiosidade no Brasil.

Informa haver várias pesquisas mundiais a respeito dessa temática e que periódicos importantes, como o Journal of the American Medical Association (JAMA), The New England Journal of Medicine e Annals of Internal Medicine, publicam estudos mostrando as relações entre a medicina e a espiritualidade/religiosidade, e relevantes universidades no Brasil e outros países também têm tratado a questão.

Discorre acerca da criação, em 1968, da Associação Médico-Espírita de São Paulo (AME-SP) e, em 1995, da Associação Médico-Espírita do Brasil (AME-Brasil), que se tornou internacional em 1999, com a fundação da Associação Médico-Espírita Internacional (AME-I).

Informa, ainda, que a AME-Brasil congrega 35 AMEs associadas, regionais, estaduais e municipais, das quais nove estão sendo organizadas, e que o objetivo da Associação é estudar a doutrina espírita codificada por Allan Kardec e sua fenomenologia, aplicando-a e integrando-a aos campos da ciência, em particular da Medicina, da Filosofia e da religião.

Considerando a relevância da temática, a consulente solicita ao Conselho Federal de Medicina respostas às seguintes questões:

1) Há uma recomendação pelo CFM da abordagem da espiritualidade/religiosidade no ensino, na pesquisa e na assistência da medicina?

2)Como é visto pelo CFM o ensino da temática que relaciona a medicina à espiritualidade/religiosidade nas faculdades e departamentos médicos brasileiros?

3)O espiritismo segundo Allan Kardec recomenda como ampliação da prática médica a aplicação da mediunidade como terapêutica por meio de passes e da ingestão de água fluidificada. Qual é o posicionamento do CFM em relação a essa abordagem na prática médica?

4)Qual é o posicionamento do CFM em relação a AME-Brasil?

5)E em relação a outras práticas, que incluem incisões, qual é o posicionamento do CFM sobre elas?

6)Há e, se sim, qual é a medida de restrição ou proibição da abordagem da espiritualidade/religiosidade pela medicina?”



FUNDAMENTAÇÃO E PARECER

As definições de saúde e adoecimento adotadas pela medicina atual estão calcadas em uma visão ampla dos seres humanos, que busca englobar todas as suas dimensões, considerando, assim, não apenas o aspecto físico, mas também a dimensão social tida como lócus de fatores condicionantes e até determinantes no processo saúde/adoecimento. Tais definições, restritas ao campo da saúde, vão ao encontro dos diversos instrumentos internacionais de direitos humanos, que também propugnam pelo reconhecimento da pessoa em sua integralidade, abarcando as dimensões objetiva e subjetiva da vida humana.

Apesar de considerada novidade adstrita à segunda metade do século XX, essa perspectiva dissociada do paradigma biotécnico-científico (que vem configurando a forma hodierna de pensar o ser humano e a saúde) não é, de fato, algo inédito na história da medicina. Ao contrário, desde Hipócrates já se reconhecia a importância dos fatores subjetivos tanto no que concerne à etiologia das doenças quanto no respeito às formas de tratamento, entendido desde o processo de anamnese até a prescrição da terapêutica propriamente dita.

Portanto, as recentes pesquisas que associam a espiritualidade à saúde e bem- estar podem ser vistas não como uma “descoberta”, mas sim como processo de recuperação de certos valores e práticas que estão na essência mesma da práxis médica ─ que durante o século passado foi subsumida aos avanços biotecnológicos. Assim, à primeira vista, essa abordagem reforça a clássica perspectiva da prática médica, especialmente no tocante à própria definição do ser humano, considerando também aspectos relevantes para o diagnóstico e a terapêutica.

Entretanto, considerando-se que a medicina apoia-se em parâmetros científicos, é importante delinear os limites do reconhecimento desses fatores subjetivos, tanto na dimensão física quanto na social, tal como admite o estado da arte atual. Ressalte-se que a importância de se ater ao conhecimento comprovado decorre, logicamente, do fato de a medicina atuar exatamente na fronteira entre a vida e a morte, circunstância que implica em adotar sempre práticas prudentes e reconhecidas. Assim, no primeiro caso, referente à recuperação física de pessoas acometidas por enfermidades, não é necessário sequer relatar as pesquisas empreendidas com a finalidade de mensurar a influência da espiritualidade no processo de cura, uma vez que trabalhos mais antigos e simples, como as pesquisas com placebo, já demonstraram a importância do fato de acreditar na produção da cura. Na dimensão social, os estudos que enfatizam a importância da espiritualidade podem ser relacionados ao reconhecimento da subjetividade da pessoa humana e associados ao arcabouço dos direitos humanos, que para a sensibilidade contemporânea são requisitos aos quais todas as pessoas têm direito, apenas por serem humanas.

Consequentemente, na perspectiva dos direitos humanos, o reconhecimento da espiritualidade em aspectos relacionados às práticas de saúde, incluindo a atenção e os serviços médicos, pode ser visto como direito cultural, garantido pelos instrumentos internacionais de direitos humanos.

Com esta fundamentação, respondo de maneira genérica aos quesitos 1, 2 e 6 e, considerando ser o CFM uma instituição laica, não vejo como aceitar pontualmente os quesitos 3 e 4, em virtude da especificidade de relacioná-los à doutrina espírita.

Finalmente, em relação à 5ª questão, o Conselho Federal de Medicina, em hipótese alguma, pode aceitar tais práticas como tratamentos médicos, pois, além dos riscos de danos à saúde – atraso de terapêutica médica, infecções etc. – estimulam as práticas do charlatanismo e do curandeirismo.

Este é o parecer, SMJ.

Brasília-DF, 12 de janeiro de 2011

Julio Rufino Torres
Conselheiro relator

Gerson Zafalon Martins
Conselheiro relator de vista