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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

sábado, 4 de setembro de 2010

Parecer CFM nº 20/2010 - Cirurgia de transgenitalização

PROCESSO-CONSULTA CFM nº 8.883/09 – PARECER CFM nº 20/10

INTERESSADO:
Promotoria de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal/Pró-Vida
ASSUNTO:
Cirurgia de transgenitalização
RELATOR:
Cons. Edevard José de Araújo

EMENTA: A intervenção cirúrgica para os procedimentos de transgenitalização são considerados éticos, desde que atendam as exigências contidas nas Resoluções do Conselho Federal de Medicina.

A CONSULTA
O promotor de Justiça do MPDFT/Pró-Vida encaminhou ao presidente do CFM documento assinado por 17 diferentes representações, envolvendo médicos, profissionais de saúde, dirigentes sociais e institucionais a respeito da Resolução CFM nº 1.652/02, que trata dos procedimentos cirúrgicos de transgenitalização.

Sucintamente, o documento historia a importância da Resolução CFM nº 1.482/97, que retirou da clandestinidade intervenções cirúrgicas do processo transexualizador. Posteriormente, foi solicitado ao CFM, por inúmeras razões, que aquela resolução fosse revista, no sentido de não considerar como experimental todos os procedimentos de transgenitalização. O pleito foi atendido e, graças a isso, foi possível um grande avanço: o de se incluir muitas dessas intervenções na Tabela de Procedimentos do SIH/SUS. Segundo os autores, desde então a Resolução CFM nº 1.652/02 tem sido referência nacional “para todas as ações endereçadas às pessoas transexuais, mesmo para os profissionais não vinculados ao Conselho Federal de Medicina”.

O documento novamente questiona a possibilidade da regulamentação ser menos restritiva aos procedimentos de transgenitalização. O embasamento é que, pelas decisões médicas, ficam submetidas todas as pessoas com interesse nesse tema. Contudo, o caráter restritivo de experimental deixa à margem todo um grupo que necessita de reconstrução de sua genitália, para adaptar-se a uma escolha de identificação sexual.

Os autores do texto abordam particularmente a situação dos homens transexuais (FtM), ou seja, indivíduos de sexo genético feminino que desejam viver socialmente como homens. Nesse contexto, há o reconhecimento de que a reconstrução genital do fenótipo feminino para o masculino, a neofaloplastia, seja mantida como experimental, tendo em vista as limitações funcionais do órgão construído cirurgicamente. Esse ditame é considerado consensual, pelo menos até o momento.

Entretanto, o documento questiona o motivo de ainda serem considerados como de caráter experimental procedimentos cirúrgicos reconhecidos, a exemplo da adenomastectomia, histerectomia ou mesmo a ooforectomia. O documento reforça o seu reconhecimento em manter a neofaloplastia como experimental, pelas razões expostas. Porém, demonstra o seu inconformismo em relação às outras intervenções quando, apenas no Sistema Único de Saúde, milhares de histerectomias e mastectomias são realizadas anualmente por indicações diversas. No texto fica demonstrado o constrangimento por que passam os transexuais, principalmente com a presença das mamas, o que os leva a submeter-se a alternativas por demais dolorosas. Da mesma forma, os transexuais consideram ter o mesmo direito de várias mulheres que podem abster-se de conviver com o seu ciclo hormonal, menstruação, etc.

Os subscritores entendem que a proibição de tais procedimentos condena os transexuais a se verem impedidos de manifestar livremente a expressão de sua personalidade e solicitam que o CFM retire do caráter experimental as intervenções cirúrgicas sobre gônadas e caracteres sexuais secundários em casos de FtM.

PARTE CONCLUSIVA
Entre os inúmeros pareceres a respeito do tema, cabe ressaltar alguns dados históricos.

Em 1994, o CRM-DF aprovou parecer, da lavra do conselheiro Pablo Magalhães Chacel, sobre a legalidade e eticidade da cirurgia transexual, reconhecendo que o médico executor não estaria cometendo infração ética. Tal parecer contrariou os ditames predominantes à época, dando início à ideia de que em havendo uma padronização e uma regulamentação, intervir no transexual seria um ato ético, legal e de ressocialização.

Considerado assunto polêmico, o CFM designou uma comissão formada pelos conselheiros Júlio Cezar Meirelles e Lúcio Mário da Cruz Bulhões para organizar um debate sobre o tema. Em sessão plenária de 10/8/95, o assunto foi amplamente discutido e ficou estabelecida a necessidade de se regulamentar e reconhecer como éticas as intervenções de transgenitalismo.

Por ocasião do I ENCM, em Salvador, em 19/3/97, o tema foi novamente trazido à discussão, quando o plenário manifestou-se favorável ao procedimento cirúrgico, desde que apreciadas as questões legais, reconhecendo tratar-se de forma especial de tratamento médico.

Em 9/5/97 foi aprovado o PC/CFM nº 39/97, da lavra dos conselheiros integrantes da Comissão de Estudos sobre Transexualismo, acima citados, reconhecendo que o transexualismo, sendo condição de inaceitável convivência com o sexo genético e provocadora de grave constrangimento, era merecedor de enquadramento e tratamento adequados.

Com esses conceitos estabelecidos, foi então aprovada a Resolução CFM nº 1.482/97, que autorizava, a título experimental, a realização de cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo. Além disso, a mesma resolução estabelecia critérios para definir o transexualismo e a seleção dos pacientes a serem operados, critérios esses ainda válidos. Finalmente, a resolução exigia que a intervenção fosse feita em hospitais universitários ou públicos e a necessidade de consentimento livre e esclarecido.

Em 2002, o instrumento legal foi revisto, revogado e aprovado na forma da Resolução CFM nº 1.652/02.

Esta resolução inicia autorizando a “cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo”. Entretanto, no artigo seguinte, autoriza, ainda que a título experimental, não só a “neofaloplastia”, mas também os “procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo”. Ou seja, a citada norma, embora reconheça e valide procedimentos como adenomastectomia, histerectomia, gonadectomias, etc., no artigo subsequente considera os mesmos procedimentos como experimentais.

Essa é a polêmica.

E esse é o questionamento: se foi reconhecido que o transexual, desde que devidamente classificado e selecionado, merece ser tratado quanto a sua incompatibilidade de conviver com o fenótipo indesejável, por que procedimentos cirúrgicos reconhecidos e usuais recebem o rótulo de experimentais?

E o que é solicitado? Que a neofaloplastia, de resultados estéticos e funcionais ainda questionáveis, seja mantida como experimental. Entretanto, as intervenções sobre gônadas e caracteres sexuais secundários, usuais na prática cirúrgica, são autorizadas desde que o paciente cumpra as exigências de definição e seleção exigidas.

Se em respeito à autonomia e à autodeterminação reconhecemos o direito de o paciente negar-se a ser submetido a qualquer tipo de tratamento e também o direito de as pessoas serem submetidas a todas as formas cabíveis de mudança corporal (próteses, lipoescultura, remodelações, etc.), por que razão não se dá esse direito ao transexual? Seria porque não concordamos com a existência do transexualismo? Ou seria porque, inconscientemente, discriminamos esse tipo de atitude humana?

Esse relator entende que a nossa função é estabelecer qual o tipo de tratamento é experimental ou usual; qual procedimento tem bases científicas ou não. Em relação ao paciente, entretanto, cabe-nos defender a sua capacidade decisória e o seu acesso a todas as informações necessárias. A partir daí, não vejo lógica para limitarmos tratamento a determinadas pessoas.

Da mesma forma não vemos razão para, quando consideramos um procedimento válido, limitarmos o local onde será feito: se em hospital público ou privado, desde que os pré-requisitos para a sua execução sejam respeitados.

Pelo exposto, sugiro que a resolução seja reavaliada, mantendo apenas a neofaloplastia como procedimento experimental, pelas razões acima expostas. Caso seja acatado o presente parecer, consigna-se ao mesmo proposta de texto para a nova resolução.

Este é o parecer, SMJ.
Brasília-DF, 12 de agosto de 2010

Edevard José de Araújo
Conselheiro relator

Fonte: CFM