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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Juiz de Cuiabá autoriza aborto de feto anencéfalo em grávida de oito meses

Veja abaixo a íntegra da decisão


Sentença com Resolução de Mérito Própria – Não Padronizável Proferida fora de Audiência Vistos etc.
S. B. da S. quer a interrupção de gravidez, com a assertiva de que o feto apresenta “(...) um quadro de anomalia complexa de parede corporal e membros (limb-body wall complex)compreendida por ausência de parede abdominal anterior, agenesia de coluna lombar e sacral, pé torto a esquerda, amputação da perna a direita com pé do mesmo lado malformado, tórax hipoplásico e artéria umbilical única. A anomalia acima mencionada é seguramente incompatível com a vida extra-uterina. Caso a gestação venha a prosseguir, todos os dados da literatura médica apontam para a morte do recém-nascido após o parto dentro de algumas horas ou dias de vida (...)”.
Afiança que desde o momento que tomou conhecimento da situação “(...) vem passando por momentos de grave angústia mental, sofrimento inenarrável frente ao fato de carregar dentro de si feto sem qualquer chance de sobrevivência de acordo com a ciência médica (...)”.
Quer deferimento de tutela de urgência e, a final, a procedência do pedido.
Juntou os documentos de fls. 20/34.
Relatório psicológico a fls. 44/51.
A fls. 52/54 insiste a autora no deferimento rápido do pedido e junta os documentos de fls. 55/61. Nova manifestação a fls. 68/71, com os documentos de fls. 72/77.
Manifestações do Ministério Público a fls. 36 com os documentos de fls. 37/42 e a fls. 63/64. No de fls. 79/88 opina pelo indeferimento do pedido.
É uma síntese do necessário.
A legislação infraconstitucional autoriza o aborto em caso de risco de vida para a gestante ou decorrente de estupro (Código Penal, art. 128, I e II). Não é fixado limite temporal.
A pergunta é: tão-somente nessas hipóteses se admite o aborto? A resposta é desenganadamente não. A Constituição Federal não pode ser interpretada com a viseira da lei infraconstitucional. A Carta Magna cultua a dignidade da pessoa humana (art. 1º) como base e fundamento de uma sociedade que tem a justiça e a igualdade como valores supremos (preâmbulo). Do princípio maior decorre a garantia de efetivação do direito ao não-sofrimento inútil. Obrigar uma mulher a levar a termo gravidez sem qualquer prognóstico de sobrevivência do feto é impor a ela fardo maior do que a sua capacidade de suportar, o que traduz em lancinante dor moral que tangencia à própria tortura.
“(...) O que faz o fiel da balança em que se pesam contrapostos valores pender para o lado da gestante, na acepção de que ela já não está obrigada a levar adiante uma gravidez tão somente comprometida com o pior dos malogros, quando do culminante instante do parto (...)“ (Ministro Carlos Ayres Britto, ADPF 54).
É certo que se trata o voto da questão de feto anencefálico, todavia é perfeitamente aplicável em hipótese semelhante, quando a probabilidade de vida fora do útero se evidencia a luz da ciência, ausente, como no caso de feto com “(...) um quadro de anomalia complexa de parede corporal e membros (limb-body wall complex) compreendida por ausência de parede abdominal anterior, agenesia de coluna lombar e sacral, pé torto a esquerda, amputação da perna a direita com pé do mesmo lado malformado, tórax hipoplásico e artéria umbilical única.
A anomalia acima mencionada é seguramente incompatível com a vida extra-uterina. Caso a gestação venha a prosseguir, todos os dados da literatura médica apontam para a morte do recém-nascido após o parto dentro de algumas horas ou dias de vida (...)”, (laudo médico, fls. 25).
É fora de dúvida que da existência de “(...) relato de um caso com onfalocele gigante e escoliose, caracterizado com boby stalk anomaly, no qual havia sobrevida com a idade de 3 anos e 4 meses, apesar da necessidade de cuidados especiais, incluindo suporte respiratório (vide literatura em anexo) (...)” (fls. 55) mais reforça do que diminui a improbabilidade de vida extrauterina. Quanto a isto, o médico José Aristodemo Pinotti (aspectos éticos da interrupção da gravidez após o diagnóstico pré-natal) acentua que “(...) deve-se desencorajar a interrupção da gravidez quando a anomalia for tratável e não vier necessariamente a afetar a qualidade de vida futura (...)”, o que a contrario sensu autoriza a conclusão de que a interrupção da gravidez deve ocorrer quando a anomalia for intratável, como é o caso dos autos.
Não é só. Pesquisa em United States National Library Of Medicine (Biomedical journal literature from MEDLINE/PubMed) e JAMA (The Journal of the American Medical Association) evidencia que a probabilidade de vida extrauterina de feto nas condições descritas no laudo de fls. 25 é praticamente a mesma do sol girar em torno da terra.
Por fim, se na hipótese de aborto autorizado pela legislação infraconstitucional não há limite temporal, por mais forte razão não se pode impor, quando ele decorre com base em fundamento constitucional.
Estas as razões por que, em desconformidade com o parecer do Ministério Público, defiro o pedido e autorizo a interrupção da gravidez. Sem custas.
Expeça alvará.
Ciência imediata ao Ministério Público.
Transitada em julgado, arquivem os autos.
Em Cuiabá, 21:00 horas do dia 9 de junho de 2010.
Luiz Carlos da Costa
Juiz de Direito em Substituição Legal