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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

sábado, 31 de julho de 2010

Parecer CFM nº 16/2010 - Médicos com atuação em indústria farmacêutica

PROCESSO-CONSULTA CFM Nº 3.872/10 – PARECER CFM Nº 16/10

INTERESSADO: Diretor científico da Associação Médica Brasileira - AMB
ASSUNTO: Exercício profissional
RELATOR: Prof. dr. Armando Otávio Vilar de Araújo


EMENTA: Médicos com atuação em indústrias farmacêuticas podem nessas exercer atividades executivas de forma integral ou parcial desde que não ocorra o simultâneo exercício da clínica. Médicos pesquisadores em estudos clínicos originados da indústria farmacêutica, com apoio financeiro desta, podem realizar pesquisas clínicas desde que sigam as normas e orientações estipuladas por protocolo de pesquisa clínica aprovada por comitê de ética em pesquisa.

HISTÓRICO
O dr. M.L., da Sociedade Brasileira de Medicina Farmacêutica – SBMF, encaminha pedido de esclarecimentos e interpretação do artigo 68 do Código de Ética Médica ao dr. E.C.B., diretor científico da Associação Médica Brasileira - AMB, que por sua vez remete essa solicitação à Presidência do CFM. Trata o presente caso de solicitação de esclarecimento oficial do CFM quanto ao questionamento sobre o artigo 68, inscrito no Capítulo VIII do Código de Ética Médica.

Alega o dr. M.L que vários médicos atuam em indústrias farmacêuticas (gerentes, diretores), de forma parcial ou integral, e vários outros atuam como pesquisadores em estudos clínicos originados da indústria farmacêutica. Assevera que, a seu ver, a atuação do médico em indústria farmacêutica não configura exercício da profissão, haja vista não existir atividade assistencial e, portanto, não fere o referido artigo. Afirma ainda que o médico investigador, ativo em pesquisa clínica, conta com o apoio financeiro da indústria farmacêutica ou de produtos para a saúde e, assim, haveria uma atividade assistencial no âmbito da instituição onde está inserido, caracterizando um vínculo entre as partes. Conclui o dr. M.L. requerendo auxílio da AMB no esclarecimento e interpretação do referido artigo, de forma a, quando questionada, poder se pronunciar oficialmente, sem ferir preceitos éticos estabelecidos pelo novo Código de Ética Médica.

APRECIAÇÃO
A medicina moderna, como resultado de avanços e progressos técnicos e científicos, conduz a transformações em um mundo industrializado, construído sobre um paradigma biológico, fundamentado em novas tecnologias industriais e em decrescente realização de procedimentos clínicos. O negócio “saúde” movimenta por ano, mundialmente, quatro trilhões de dólares, valor que aproximadamente se equivale ao PIB anual da China.

No contexto do modelo mercantilista, vislumbra-se um distanciamento entre o médico e o paciente, causando o risco de o médico transformar-se em simples intermediário entre o paciente e a tecnologia. Como convergência de fatores históricos e culturais que validaram os axiomas básicos da medicina ocidental em que o corpo é uma máquina, a doença uma avaria e a tarefa do médico é consertá-la, determina-se uma prática de assistência à saúde com uma hierarquização assistencial e captação de recursos para sua execução. O paradigma cartesiano newtoniano (visão dualista do homem) tornou-se a base de todos os sistemas conceituais da ciência. Na medicina, a aplicação do paradigma mecanicista enfatizou o estudo isolado dos órgãos e tecidos, reforçado pelos avanços marcantes da microbiologia no século XIX.

Em 1845, Engels publicou “As condições da classe operária na Inglaterra”, primeiro estudo marxista sobre o atendimento à saúde, descrevendo a origem das doenças como multifatorial. Por volta de 1910, na visão capitalista a saúde torna-se interessante negócio com o advento de grandes grupos mercantilistas e o crescimento de centros médicos associados a universidades com o objetivo de obter lucro.

A prática médica na atualidade está relacionada, infelizmente, a forte pressão proveniente da avassaladora mercantilização da medicina e vem sendo engolida pelo modelo capitalista de mercado, relegando o humanismo a segundo plano. Atualmente, temos um modelo médico que localiza na doença e não no doente seu objeto de análise. Constata-se um distanciamento emocional entre o médico e o paciente, gerando insatisfação crescente em ambos. Lamentavelmente, os médicos vêm esquecendo a relação médico-paciente e dirigem sua atenção e obrigações para com as instituições onde exercem suas atividades, mais notadamente no setor de contabilidade, com objetivos mais poderosos que o sucesso na prática clínica. O equipamento ultrassofisticado ou “high-tech” tem prioridade sobre a cuidadosa semiotécnica do velho professor que tão bem a explicou e demonstrou durante o aprendizado na faculdade de Medicina.

A relação médico-paciente é o alicerce do exercício da medicina, devendo ocorrer de forma autônoma e sem condicionantes. O relacionamento entre médicos e a indústria farmacêutica e de equipamentos e as possíveis consequências sobre a independência do trabalho médico enseja preocupação, sendo relevante e atual. Não pode o médico ficar alheio à finalidade social da medicina e aos interesses do seu paciente.

Mercantilizar a medicina é transformá-la em objeto de lucro, superposto ao exercício profissional. A classe médica e a indústria farmacêutica devem nortear-se por princípios éticos aplicáveis ao exercício de sua atividade. Fazem-se necessárias a independência e credibilidade de ambas as partes, com total transparência, evitando o surgimento de conflitos. As tomadas de decisões médicas devem ser garantidas, bem como sua independência clínica. O médico deve sempre guiar-se pelo dever ético em suas tomadas de decisões, de forma independente, praticando uma medicina que tenha por meta o efetivo benefício dos pacientes.

FUNDAMENTAÇÃO LEGAL
A conduta ética dos médicos está disciplinada pela observância obrigatória dos preceitos consignados no Código de Ética Médica, os quais, descumpridos, poderão ensejar sanções disciplinadoras no exercício da profissão, independente do cargo ou função. Transformar a medicina em ato de mercancia é eticamente reprovável.

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define interação como “influência mútua de órgãos ou organismos inter-relacionados” e “dependência” como “estado ou qualidade de dependente; subordinação, sujeição”.

O Decreto nº 20.931/32, em seu artigo 16, letra “g”, afirma in verbis:

É vedado ao médico:
g) fazer parte, quando exerça a clínica, de empresa que explore a indústria farmacêutica ou seu comércio. Aos médicos autores de fórmulas de especialidades farmacêuticas, serão, porém assegurados os respectivos direitos, embora não as possam explorar comercialmente desde que exerçam a clínica.

O Código de Ética Médica, em consonância com a redação acima, estabelece:

Capítulo VIII- REMUNERAÇÃO PROFISSIONAL

É vedado ao médico:
Art. 68. Exercer a profissão com interação ou dependência de farmácia, indústria farmacêutica, óptica ou qualquer organização destinada à fabricação, manipulação, promoção ou comercialização de produtos de prescrição médica, qualquer que seja sua natureza.

Não existe nenhuma lei anterior ao Decreto no 20.931/32 que traga qualquer modificação ou revogação deste, o qual proíbe ao médico participar de empresas que explorem o comércio farmacêutico, enquanto exerça a clínica (grifo nosso). O trabalho médico só deve beneficiar o médico e o paciente assistido, sendo descabida sua exploração por terceiros, qualquer que seja o sentido. É dever do médico combater os excessos constatados.

O decreto suprarreferido veda o exercício simultâneo entre a Farmácia e a Medicina, com interação entre uma e outra, ou seja, a exploração das duas atividades com a finalidade de obter lucro. Constata-se que existe uma proibição na interação do “médico em atividade” com farmácia, laboratório, ou qualquer empresa destinada à fabricação, manipulação e comercialização de produtos farmacêuticos.

A vinculação do médico com os estabelecimentos nominados na letra “g” do artigo 16 do Decreto no 20.931/32 e o artigo 68 do Código de Ética Médica explicitam claramente o exercício simultâneo como atitude ilegal e antiética, “exceto” se o médico não estiver exercendo a clínica.

Veda-se o exercício da medicina que visa ao lucro e à obtenção de vantagens econômicas em decorrência da prática médica simultânea em interação com a Farmácia ou a indústria farmacêutica, colocando a saúde humana em segundo plano. Os atos que tenham essa finalidade são considerados contrários à ética médica, pois neles a mercantilização da medicina se concretiza.

CONCLUSÃO
Ante as explanações ora elencadas, entendo que os médicos que atuam em atividades executivas (gerente, diretores) em indústrias farmacêuticas, de forma parcial ou integral, desde que não exerçam simultaneamente a clínica, não transgridem o Decreto no 20.931/32 nem o Código de Ética Médica.

Considero como ética a atuação de médicos pesquisadores em estudos clínicos originados da indústria farmacêutica e que contam com o apoio financeiro da mesma ou de produtos para a saúde, desde que sigam as normas e orientações estipuladas por protocolos de pesquisa clínica e previamente obtenham a aprovação por comitê de ética em pesquisa, por não ficar caracterizada a prática da medicina sob dependência da indústria farmacêutica e tampouco a obtenção de vantagens econômicas, mas sim o favorecimento do avanço da ciência.

Este é meu entendimento, sub censura.

Brasília-DF, 11 de junho de 2010

Armando Otávio Vilar de Araújo

Relator

Fonte: CFM